ainda é preciso construir palavras


instante
Em tudo ao redor, dentro, e sempre,
permeiam, atravessam, entremeiam-se
o mistério e a banalidade,
silenciosamente, escondidos em toda parte
luz e sombra, invisíveis,
perenemente dissociados.
Uma escolha íntima ergue ou derruba
ponte ou torre ao outro lado,
ou à este mundo condenado.

Em silêncio na noite em claro
ouvi o canto calado, e calmo segui
com espírito alado, e descobri o atalho,
abandonei a esfera grosseira do enfado.
Nada perdi ao esquecer,
ao descortinar inefáveis mundos.
Ganhei os céus como um herói.

Não há descanso aqui, não há sono,
tudo é elétrico. É requerido estar vigilante.
Hiper-sensibilidade pede hiper-destreza.
Pousei meu olhar interno
em paragens de imensa glória
que nenhum mortal viu ou tocou,
e percorri a rota
etérea e misteriosa,
surpreendi as portas e os portais
desguarnecidos, e o paraíso
a um passo de in-distância.
capital nostalgia
Tarde na cidade,
quantas promessas me fazes.
Encanta meu coração com tuas luzes,
prelúdios de uma noite de outubro.

Quero apreciar-te calmamente.
Eternizar-te, registrar-te num retrato,
este suave prenúncio do crepúsculo
que entusiasma, dá vida às esperanças.

O que virá depois? Não se sabe.
Mas hoje, aqui nesta tarde,
deixa-me contemplar-te
e afagar-te, diáfano, como tu me afagas
na alma.

O murmúrio dos carros e da gente,
que tu evoca e atiça calmamente.
Os carros passantes e as luzes dos restaurantes,
o morno concreto de uma nobreza quase triste.

Pudera eu ser imortal para beber
de tua beleza milhões de vezes, repetidas
e jamais me cansar da tua magia
religiosidade
Eu pratico-a, e adentro um labirinto sublime,
e me perco na infindável tapeçaria,
das pétalas de infinitas espécies
de flores. Fragrâncias e sedas,
tecem as formas e os nomes divinos,
virtudes, sabedorias

Percorro aeons,
atravesso universos,
reorganizo meus próprios
ares vitais

A luz desce, vem à mim,
e me envolve, e me cobre,
e ilumina a visão interior,
o tato toca a superfície do rio
do esplendor da experiência religiosa

Compaixão, beleza, benevolência.
Quero fazer o bem, não mais o mal

-E tudo isso é como que nada.
Eu e o mundo continuamos os mesmos.
Ignorando a dor, que calmamente acumula-se.
Pergunto: e os outros? e os outros?
Prazer e dor. Bilhões.
Falácias.
Cansaço.
Ocaso.

Amanhã o dia recomeça, rebobina-se a luz do sol
Ilumina as nostalgias e as esperanças,
as lágrimas e os lucros.
Fugir de tudo tornaria tudo ainda mais difícil.
Por honra, mantemos a postura.
Por tristeza, a pureza.
oásis
Há luzes no mundo
tão belas agora, como nunca,
nesta hora de crepúsculo

Luzes, há, e matizes de púrpura,
delicias aos sentidos,
e brisa fresca, preguiçosa, do oasis

E há, sim, luzes, na cidade,
como luz do sol em Bagdad
luzes como lágrimas, brotando devagar
dos olhos da odalisca, no harém de um marajá

Há luzes! Há!!
Em meu ser cravejado de estrelas,
que tem tido sofrê-las
e onde quer que tu estejas
Inner images
Lying down on the ground and paying attention to our own mind
is an easy way to perceive the images of the soul-world.
If in that state we concentrate on something, after due training,
it is possible to travel throughout the spirit realm.

There are two main obstacles:
1) not being able to reach or maintain the right state of mind (which can be overcome through regular practice of self-observation and training meditation)
2) falling asleep for too long, thus losing control over mind, body, and memory.
(The second obstacle can be overcome by standing up every 10 minutes to record the visions, then restarting the practice over and over.)

After years of training, anyone may travel at will.
abramelin
So I was, embraced once again
by the all-encompassing calmness
of the infinite, silent,
sweetness of Its presence.

I know nothing whatsoever.
I’m as lost as I ever was—
Not a clue, no new thought crossing my mind
about what to do with this gift I’ve been given.
This presence, this infatuation,
bringing me ecstasy and sadness.
My words betray me, my imperfection becomes apparent:

I’m a pitiable human, limited and foolish.
"I wish I could speak in the language of angels."
"I wish I could paint the landscapes of my spirit."
"I wish I could sing and play the melodies of this hour,
And share this profundity with my brothers and sisters."

I never could—though I tried many times.
It only brought discomfort, another stain on the face of sacred Nothing,
That is perfect by being not.
So I wrote a poem, and poured my heart into words and verse,
Hoping it would accomplish what I longed for:
To express this intoxication
as flowers scatter noble scents into the night air,

so those who perceive it may also
partake in a small heavenly moment,
transient, like everything else.
terna
Escuridão.
Nobreza e nostalgia abraçam-me.
Embriagam meu coração de sonhos frios.
Névoa, geada.
Imortais expansões secretas.
Habitam-na lobos, espíritos e noturnos mistérios.
um relato
Puxar as palavras de lá, do mundo interior, para cá, para o texto, é uma capacidade quase deificante.
Viajei pelo Brasil, e ao ficar a sós com os lugares onde passei minha infância, revisitados, não conseguia manter-me atento.
Era como estar em um sonho, em que não é possível sentir-se totalmente real, nem completamente presente, de mente inteira.
Por mais que eu tentasse. Um sono no meu espírito ou a simples comoção intensa daqueles momentos, me tiraram uma parcela importante da consciência.
Talvez o frio e a neblina tiveram um papel nisso. Toda aquela viagem pareceu-me um imenso sonho de anestesia.
Separado de tudo. Sozinho vagando pelas cidades, testemunhando tudo e alheio a tudo. Um estrangeiro.
Saboreando calmamente a sinestesia de cenários íntimos, e dos lugares sempre novos e sempre velhos.
É notável que, de certa forma, "vencer na vida" é o oposto disso.
Mas a vitória tem gosto de superficialidade, de velocidade e movimento, de expressão e personalidade sem espaço para profundidade ou reflexões.
Nada de vagar por cenários oníricos solitariamente. Não.
A vitória parece mais uma montanha russa, com a mente embriagada de egolatria e risada.
Embotada, anestesiada.
ascetas
Na floresta, nessa hora
flores grandes, coloridas,
rosas, lírios, margaridas
florescendo com a aurora
Nas montanhas esculpidas,
ascetas oniscientes.
Águas puras em nascentes
lavam suas feridas
O sábio em sua caverna
duvida de sua sabedoria
É a morte uma alegoria
ou o dom da vida eterna?

Artur Roncato